Nestes primeiros anos do século XXI, um dos grupos mais importantes na cena autoral da música popular rioplatense contemporânea (especialmente o tango) é o La Chicana, capitaneado por Acho Estol (guitarra e voz) e Dolores Solá (voz principal) e formado ainda por Osiris Rodriguez (violino), Patricio “Tripa” Bonfiglio (bandoneón), Federico Tellechea (percussão) e Manuel Onis (baixo).

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Em 2003, o grupo lançou o álbum Tango Agazapado, vencedor no ano seguinte do Prêmio Carlos Gardel na categoria Tango Nuevas Formas. No repertório do disco, 17 temas excelentes, a maioria composta por Acho Estol e outros selecionados ou entre a fina flor da tanguería (como Discépolo, Cadícamo e Le Pera) ou entre outras grandes referências artísticas, como a parceria Brecht/Weil e Eduardo Mateo.

De certa maneira, a vinculação do álbum à categoria de “novas formas” faz sentido, pois quem procura as manifestações mais engessadas e for export do tango argentino não encontrará nas canções do disco a realização de suas expectativas. Porém, boa parte do estranhamento que um ouvinte desavisado pode ter em relação às combinações sonoras das músicas de Tango Agazapado, deve-se ao desconhecimento das origens plurais do tango argentino, relacionado com outras expressões do cancioneiro rioplatense. Carlos Gardel mesmo, como é sabido, antes de ter seu repertório predominantemente formado por tango-canção, interpretava outros ritmos, vinculados ao folklore e à música criolla (ou dos contatos com outras tradições musicais, como a rumba e valsa), principalmente quando formava duo com Razzano.

No entanto, a combinação que La Chicana faz entre as diversas expressões da música criolla, como um repertório que dialoga de forma “natural” com o tango, não é um mero “retorno às origens”. Não só porque a musicalidade incorpora influências mais contemporâneas, como o rock, mas principalmente pela criatividade sui generis da poesia e dos arranjos de Acho Estol e da performance arrojada e inconfundível de Dolores Solá.

As composições do bardo porteño, aliás, transitam com a mesma competência e qualidade entre o lirismo melancólico (como na incrível Una iguana y tres monedas) e a crítica social e cultural, como na Chamarrita del chaman. Além disso, as internvenções de Acho e dos músicos do grupo nas releituras de clássicos, como em Confesión, desvelam outras possibilidades e potencialidades dos arranjos anteriores e/ou originais.

Na canção que escolhi para vocês apreciarem, intitulada Juguete rabioso, o narrador conta suas desventuras existenciais e amorosas com fina ironia e criativa revolta, permitindo-se, inclusive (em um dos versos, no excerto abaixo) fazer referência ao primeiro tango-canção da história (Mi noche triste, 1916, de Pascual Contursi e Samuel Castriota).

Portanto, barra querida, há 10 anos o tango ganhou ainda mais vida pela arte dos sensacionais músicos do La Chicana!

Saudações musicais!

En mi guitarra atorranta
hay un tango agazapado,
percanta que me amuraste
no te puedo ni cantar.

No me sale más lirismo,
tengo un verso atragantado
donde te mando a la mierda
después vuelvo a suplicar…