No processo criativo de um artista, talvez uma das principais dificuldades seja encontrar o próprio fio de Ariadne nos labirintos da tradição cultural ao qual ele se vincula. Ainda mais se pensarmos que esse artista pretende contribuir com uma originalidade que não vende uma “pureza” falaciosa, mas evidencia constantemente suas raízes e suas referências, deixando claro que parte considerável da arte emana de manifestações culturais coletivas e do ato de partilhar sentidos e significados.

Para quem conhece o estilo “Milonga Blues” do cantor e compositor Oly Jr. (ao qual já nos referimos em postagem anterior AQUI), a procura por uma identidade musical que dialoga fortemente com as tradições musicais da milonga e do blues, mas tenta imprimir uma marca específica e qualitiativamente diferenciada nesta dupla apropriação, é percebida imediatamente na arte deste músico.

Crédito: Fabiano Dallmeyer

No segundo lançamento discográfico do artista dentro dessa proposta, depois do premiado Milonga Blues (2009), Oly Jr. construiu o repertório de 10 canções com milongas presentes nos discos de Bebeto Alves e Vitor Ramil. O álbum Milonga em Blue (Notas do Delta) apresenta o músico e seus parceiros Jacques Jardim (baixolão) e Jacques Trajano (cajon e bombo leguero), conhecidos como Os Tocaios, na releitura da tradição milongueira do sul do Brasil que inspirou o artista.

Mas engana-se quem pensa que este é um disco de “versões”. Nas releituras presentes no repertório do álbum, Oly Jr. faz mesmo uma intervenção artística na tradição revisitando-a pela ótica da milonga blues e propondo novos arranjos e novas formas de abordagem das canções. Para essa tarefa, além do trio já citado, o álbum contou com a participação especial dos instrumentistas Paulo Inchauspe (violão solo, ukelelê e banjo), Paulinho Cardoso (acordeon) e Arthur de Faria (acordeon).

Os méritos dessa empreitada artística atravessam o disco do início ao fim. Primeiro, a escolha do repertório: só a presença de ¿Qué se Pasa?, do histórico LP Paralelo 30, já coloca em evidência a valorização e a pesquisa que o artista faz das referências cancioneiras da sua aldeia. Segundo, os arranjos bem cuidados e criativos conseguem demonstrar as potencialidades tanto das milongas mais heterodoxas de Bebeto e Mauro Moraes quanto daquelas mais herméticas de Vitor. Nesse sentido, Oly Jr. não só mostra a sua qualidade como compositor e arranjador, mas também contribui para identificarmos ainda mais as riquezas dos milongueiros urbanos sulistas.

Por tudo isso e por muitas outras qualidades que você, leitor e ouvinte, pode identificar neste álbum, convido-o para apreciar duas das canções do repertório do disco (¿Qué se Pasa? e Deixando o Pago), postadas abaixo, acompanhadas dos comentários do próprio Oly Jr., que gentilmente contribuiu com seu belo texto e sua reflexão para qualificar nossa fruição artística. Para quem quiser conhecer mais músicas é só acessar a página do artista no SoundCloud e/ou comprar o disco no Estúdio Musitek e nas lojas Toca do Disco e Livraria Cultura em Porto Alegre.

Saudações musicais!

Epifania (por Oly Jr.)

Toda vez que me lembro da ocasião em que tive uma súbita sensação de realização, misturando milonga com blues, penso o quanto foi importante para minha formação musical o hábito de garimpar LPs em sebos espalhados por Porto Alegre, gravar músicas em fita cassete e ouvir muito rádio. Porque era assim que eu assimilava as canções e devaneava solito pelas ruas da cidade. Ora caminhando pelo centrão, ora sentado no banco de um ônibus indo para infinitos destinos.

Quando vi um disco chamado “Paralelo 30” no meio de tantos discos de vinil, logo peguei e fiquei analisando a capa e a lista de canções na contracapa. Fiquei curioso, pois sabendo que Porto Alegre localiza-se nesse paralelo, em termos latitudinais, ouvia Kleiton & Kledir e sua “Deu pra Ti”, imediatamente me reconheci naquela obra, através do título. Comprei o disco e fui para casa lendo o encarte sobre os artistas que compunham aquele LP. Um deles era Bebeto Alves. Eu já conhecia o trabalho do Bebeto, pois volta e meia eu escutava umas canções dele na rádio e já tinha um disco dele chamado “Pegadas”. Para mim, Bebeto Alves era sinônimo de rock cabeça. Porque a música que dá nome ao disco é rock ‘n’ roll dylanesco. Um petardo na mente de qualquer apreciador de música com um conteúdo realista pode-se assim dizer. Tinha baladas e até reggae nesse LP. Bah, que disco! Aí eu chego em casa, ponho o bolachão (como alguns também chamavam os LPs) no toca disco e a primeira canção é “¿Que se Pasa?”. Uma milonga cantada de um jeito diferente. Sem aquela impostação de voz que geralmente se ouve no cenário da música tradicionalista. Opa! Me bateu o sinal de alerta! Ponto pra Bebeto Alves.

Certo dia estava eu, indo da zona sul ao centro de Porto Alegre de ônibus, escutando uma estação de rádio no meu walkman pra lá de surrado. Coincidência ou não, antes de sair de casa eu estava tomando café e escutando um baita disco chamado “Tango”, do Vitor Ramil. Já vão saber o porque da coincidência. Então, como eu ia dizendo, eu estava sentado lá no fundo do ônibus escutando rádio e ouço uma canção com um conteúdo regionalista, cantada e tocada de forma suave tanto na voz quanto na linha melódica no violão. Parecia Caetano Veloso. Mas pensei: “Caetano Veloso cantando uma música com forte apelo regional gaúcho?”. Ele já tinha gravado “Felicidade” do Lupicínio, porque não outra homenagem ao povo gaúcho? Terminou a canção e o comunicador disse que era uma música do novo disco do Vitor Ramil. Ah, bom! Agora, sim! Tudo se encaixou. Incrível a similaridade da voz do Vitor com a do Caetano. Acho que até ele concorda. De que música eu to falando? “Deixando o Pago”. Me lembro que ao mesmo tempo que eu fiquei frustrado por saber que não era o Caetano cantando uma canção gaudéria, pois isso poderia significar mudanças drásticas na música popular gaúcha e brasileira, sendo o apocalipse para uns e a ressurreição para outros. Mas fiquei muito feliz também, por ter vindo de um artista sul-brasileiro, que desde o início de sua carreira, assim com o Bebeto Alves, buscava aproximar o universo regionalista com as expressões musicais contemporâneas. E isso em plena década de 1990. Ponto pra Vitor Ramil.

Essas duas canções, “¿Qué se Pasa?” e “Deixando o Pago”, e outras tantas desses dois artistas de mão cheia, me fizeram perceber que existe uma linha evolutiva na música sulista. E eu, como estou nessa “barca”, faço parte direta e indiretamente desse contexto. Então, nada mais justo do que eu fazer um trabalho fonográfico, interpretando algumas canções que tangem o repertório musical desses dois milongueiros de marca maior. Já escrevi algumas vezes que, quando senti a necessidade de fazer um trabalho musical voltado para a milonga, não estava seguro da minha capacidade, pois tinha a nítida impressão que eu os imitaria. Mas como as epifanias surgem do nada, pealando corações e mentes dos viventes que tiveram essa experiência, quando eu toquei uma melodia milongueada, frisando seu bordoneio caracterísitico e deslizando um cilindro de vidro (slide), como faziam os bluesmen do delta do rio Mississippi, me dei conta que eu poderia tocar milonga com a minha própria bagagem musical, com certa peculiaridade e contribuindo para essa linha evolutiva da música brasileira feita no sul. Misturei a milonga pampeana com o blues americano, me autoproclamando “milongueiro do asfalto” e “bluseiro do delta do Jacuí”, fazendo assim meu próprio universo artístico, musical e profissional. E parafraseando Jorge Luiz Borges: “meu alimento é todas as coisas”; da milonga ao blues, do pampa ao litoral, de norte a sul, de Bebeto Alves a Muddy Waters, de Robert Johnson a Vitor Ramil.